O Craque

Apenas duas letras, o “bê” e o “ó”, repetidas duas vezes. Um acento circunflexo na última vogal. Pronto. Está formada a palavra. É a aí que começa o problema. Não tem significado algum. Não adianta procurar nas melhores enciclopédias. Nem nos mais modernos e atuais dicionários.

Quem não é amante do futebol brasileiro, certamente, pensa tratar-se de algum erro de grafia quando depara com a tal palavra. Uns podem pensar: “ao invés do circunflexo, não seria o acento agudo nesse ´o´ ? Acho que queria se referir àquele prato típico da gastronomia baiana, feito de camarão”. 

Em alguns casos, pode até ser engano, erro ortográfico, a não ser que, nas páginas que se encontra, a palavra esteja associada à elegância, sutileza, genialidade, gols, maestria ou inteligência. Se falar do Bahia então, pode estar certo: definitivamente, não se trata de uma comida. 

Ele provocou em seus apreciadores o mesmo deleite (ou mais) do prato feito à base do precioso fruto-do-mar. Também é típico da Bahia. Aliás, ele é a cara da Bahia. E, com certeza, para quem ama o futebol e é brasileiro, é mais famoso que o quase homônimo.

Um apelido, uma marca

A palavra em questão é um nome, ou melhor, um apelido – Bobô. Herança da infância na cidade de Senhor do Bomfim, interior baiano, há 374 km de Salvador. Rita, a irmã caçula, não conseguia chamar o mano Raimundo Nonato Tavares da Silva pelo primeiro nome. Inventou, sabe-se lá por quê, o “Bobô”. Pegou.
Quando chegou na Catuense, em 1981, os colegas quiseram mudar para “Tinquin”, por causa do corpo franzino. Mas não teve jeito. O moleque magro já tinha ganhado certa notoriedade com o apelido dos tempos de criança e até preferia ser chamado daquele jeito. Ligava-o, de certa forma, aos pais, Seu Florisvaldo e Dona Tieta, irmãos, amigos de Bonfim. “Nunca fiz questão de mudar porque remetia a coisas maravilhosas da minha vida”, justifica.

 

O começo

O nome começou a quebrar as fronteiras da cidade natal quando o técnico de juniores da Catuense, João Correia, viu o adolescente franzino fezendo miséria nos campos de terra batida e pouquíssima grama de Bomfim, quando atuava pelo Bahia Jovem, um time amador. Resolveu apostar no garoto e o levou para a sua equipe, na época, sediada em Alagoinhas, também interior baiano.
A princípio, a mãe não gostou da idéia. Era muito apegada a Bobô. Estava insegura com a ida do filho para uma cidade nova, cheia de desconhecidos. Pra piorar, o desejo de Dona Tieta era ver o caçula dos homens engenheiro. “A vontade de virar jogador era maior”, conta Bobô.
Realizar o desejo foi uma questão meramente de tempo. Talento, o garoto tinha de sobra. Fartura também de humildade. O então candidato a craque não se achava tão bom quanto o irmão mais velho Renílson, um quarto-zagueiro “perfeito”. Chegaram a jogar juntos. Mas Renílson trocou os gramados pelo banco.

Desistir não

A missão de honrar a família Tavares da Silva nos gramados ficou mesmo com Raimundo. Precisou só de dois meses para pular dos juniores para o elenco principal da “Catuca”.
Era reserva do veterano meia Dendê, mas caminhava a largos passos para assumir a titularidade quando viveu o momento mais difícil da incipiente carreira – rompeu os ligamentos do joelho, em 1982.
A cirurgia para reconstrução foi bem sucedida, mas a recuperação não. Um inchaço no pé persistia e mantinha o craque longe dos gramados. O na o de 1983 foi todo de inatividade. Pensou em abandonar a maior paixão. Só não o fez graças aos insistentes pedidos os dirigentes da Catuense e à chegada do técnico Campeão Mundial de 1962 com a Seleção, Aymoré Moreira.
“Continue aqui e eu vu te transformar num craque de verdade. Você tem talento de sobra para isso”. As palavras de um dos homens mais vitoriosos do nosso futebol sensibilizaram Bobô. Que decidiu permanecer.

Estrela começa a brilhar

Conseguiu, com esforço, se livrar das dores no pé e voltou a jogar, ou melhor, a brilhar, em 1984.
Aymoré armou o esquema tático da Catuense naquele ano para privilegiar o futebol de Bobô e do lateral-direito Zanata. “Escalava dois volantes só para dar liberdade aos dois”. A dupla correspondeu à aposta.
Comandado, magistralmente, por Bobô, a Catuense fez sua melhor campanha na história dos Estaduais. O meia foi o vice-artilheiro da competição, com 18 gols. “Nada mal para quem joga no meio”, brinca.
O sucesso fez o nome então desconhecido ecoar no além-mar. Vieram propostas da Suíça, do Benfica de Portugal e até do Equador para tirarem a pérola da Catuense. Sem contar no interesse de Palmeiras e Fluminense. “Não senti firmeza”, justifica, ao explicar porque não foi embora.
Reza a lenda que Bobô não fechou com o tricolor carioca por pura implicância de um dirigente com seu exótico apelido. “Não podemos pagar 1 milhão por um jogador chamado Bobô”, teria dito o então supervisor José Dias.

O Bahia de Bobô

Acostumado a assistir Bobô in loco e a sofrer contra as peripécias do meia contra o seu Bahia, o então presidente do clube, Paulo Maracajá, sabia que o craque valia a fortuna. E a desembolsou, naquela que foi a maior transação envolvendo clubes nordestinos até então.

Em janeiro de 1986, desembarcava no Fazendão, o CT do Bahia, um homem que marcaria definitivamente a vida de um clube, que conheceria identidade sem igual com seus torcedores, que retribuiria todo carinho com genialidade, maestria, raça, amor, gols e, o melhor, seria um dos principais responsáveis e grande ídolo da maior conquista tricolor em todos os tempos – o Campeonato Brasileiro de 1988.
Logo no primeiro ano na nova casa, Bobô mostrou a que veio. O timaço que o tinha como principal referência e contava com outros grandes jogadores como Cláudio Adão e Zanata, foi Campeão Baiano com quatro rodadas de antecedência. No Brasileiro, o clube fez a melhor campanha dos últimos anos – ficou em quinto, sendo eliminado apenas pelo vice-campeão Guarani.
Em 1987, já ídolo máximo da torcida, não pode dar seguimento ao bom início por ter rompido novamente o ligamento. Foram sete meses parado. Voltou no Nacional. “Num jogo contra o São Paulo, entrei no finalzinho, só para ganhar ritmo, e acabei marcando um gol”.

Melhor do Brasil

O sofrimento pela nova inatividade seria compensado com a maior glória da carreira, no ano seguinte.
Já a principal referência do Bahia, Bobô recebeu a tarja de capitão do técnico Evaristo de Macedo. Era um líder simbólico e nato. Fora de campo, foi o grande aglutinador do elenco. Dentro, o maestro.
A bola necessariamente passava pelo seu pé e era bem tratada. Com o entrosamento do time, vieram as vitórias, a confiança da torcida, o povo lotando os estádio e contagiando a equipe. Nas arquibancadas, o grito mais ouvido era o coro “Bobô! Bobô’.
De desacreditado, o Bahia passou a favorito após triunfos contra Corinthians, Palmeiras, Internacional , Cruzeiro, Santos e São Paulo, em pleno Morumbi, com direito a dois gols do craque.
No mata-mata, o Tricolor eliminou Sport. Pegou o Fluminense nas semifinais. Bobô brilhou no jogo de ida, no Maracanã. “Uma das melhores exibições da minha carreira”. O Bahia sobrou, mas perdeu muitos gols e ficou no empate. No jogo de volta, o craque ajudou a assegurar a vaga na finalíssima com um dos gols na vitória por 2 a 1. 

Nos dois últimos embates com o Inter/RS, Bobô foi decisivo. Na Fonte Nova, marcou os dois gols mais importantes da sua carreira e da história do Bahia, sobre o consagrado Taffarel. O 2 a 1 na ida dava a vantagem na volta. Após segurar o 0 a 0 contra mais de 80 mil pessoas no Beira Rio, o Bahia de Bobô assegurou o título!

Glórias para o craque, eleito pela imprensa o melhor jogador da competição e, pela torcida, o grande ídolo da conquista. As atuações o fizeram chegar à Seleção Brasileira, realizando um sonho de infância.

Bobô na Seleção Brasileira

A convocação foi um marco na história do futebol baiano. Havia anos que um atleta da terra, atuando num clube nativo, não era chamado para vestir a amarelinha mais famosa do mundo. Bobô faria a sua estréia pelo Brasil num amistoso em Goiânia, contra o Paraguai, mas o sonho teve que ser adiado, por causa de uma contusão.

 

De um Tricolor para outro

Conseguiu chegar lá, só que mais tarde, já atuando por outro tricolor, o São Paulo. Bobô desembarcou no Morumbi em 1989 com pompa de craque. Era o jogador mais badalado do país depois do brilhante Brasileiro de 1988. Além disso, nada mais, nada menos que U$ 900 mil foram desembolsados pelo São Paulo para tê-lo, além da cessão de três jogadores para o Bahia – maior transação do futebol nacional na época.
O craque justificou a grana preta. De cara, ajudou o São Paulo a ser Campeão Paulista de 1989. No Brasileiro, foi um dos destaques do time que chegou ao vice-campeonato. Ao fim da competição, o reconhecimento – eleito pela revista Placar o melhor meia, superando até Zico, que tinha voltado ao Flamengo.
O ano de 1989 foi inesquecível para Bobô. Campeão com o Bahia, Campeão com o São Paulo e titular da Seleção Brasileira em dois amistosos, ambos contra o Peru. Em Fortaleza, vitória por 4 a 1. Em Lima, empate em 1 a 1.

Campeão no Mengão

O sucesso em São Paulo despertou o interesse dos vizinhos cariocas. Mais precisamente, do clube de maior torcida do Brasil, o Flamengo. Em 1990, Bobô vestiu a camisa rubro-negra mais amada do país. Foram seis meses inesquecíveis para o craque.
No curto período, quando atuou por empréstimo, foi Campeão da Copa do Brasil pelo mengo, numa final contra o Goiás, e artilheiro do time – marcou 17 gols em 25 jogos. Jogou ao lado de feras como Renato Gaúcho, Zinho e Djalminha.

 

 

 

 

Bobô nas Laranjeiras

Em 1991, teve o passe comprado por um dos maiores rivais rubro-negros, o Fluminense, e iniciou aquela que, para ele, foi a melhor passagem por um clube depois do Bahia.
“Criei uma identidade muito grande com a torcida. Acho que era porque jogávamos nas Laranjeiras, um estádio acanhado, mas charmoso, que nos deixava bem perto dos torcedores. Chegamos à reta final de todas as competições que disputamos, apesar de termos uma equipe limitada. Foi muito bom”, relembra Bobô.
 
 
No Flu, o craque formou uma dupla inesquecível como Ézio, que de tanto receber assistências de Bobô e marcar gols, acabou apelidado pela imprensa de “Super-Ézio”. Juntos, eles foram os protagonistas das boas campanhas tricolores na Copa do Brasil (vice-campeão), Brasileiro (3º colocado) e Carioca (Campeão da Taça Guanabara).
O Fluminense foi especial para Bobô ainda porque significou a realização do sonho pessoal de uma pessoa muito querida pelo craque, o pai, seu Florisvaldo, torcedor do Flu. “Ele sempre quis que eu jogasse lá. Foi um fator muito importante para minha transferência”.

Ídolo da fiel

Em 1993, Bobô voltou ao futebol paulista, para uma rápida passagem no Corinthians. Disputou e foi vice-campeão do Paulistão, ao lado de Neto, que se tornou um grande amigo. Também chegou até a final do Torneio Rio-SP pelo timão. Apesar da curta estada, Bobô caiu nas graças da fiel torcida corintiana e até hoje é considerado um dos mais carismáticos personagens da história do timão. Fez 16 gols pelo clube do Parque São Jorge.

Convite de Falcão

No segundo semestre de 1993, Bobô foi para o Inter, atendendo a um convite do treinador Falcão. Valeu a pena pela experiência de morar em Porto Alegre, “uma cidade maravilhosa”, e pelo contato com a torcida colorada. “Eles me trataram muito bem apesar da desconfiança inicial, já que eu tinha sido o grande carrasco do Inter no Brasileiro de 1988”.

Volta para casa

O ano seguinte, de 1994, foi um dos piores da carreira de Bobô. Ficou a temporada inteira sem jogar por causa de uma briga judicial com o Corinthians. Só voltou em 1995, para a Catuense. Disputou o Baiano, readquiriu a forma e no segundo semestre retornou ao Bahia com um pensamento – encerrar a gloriosa carreira no clube que o consagrou.
Foram dois anos no Tricolor. Disputou os Brasileiros de 1995 e 1996, além dos Estaduais de 1996 e 1997 e duas Copas do Nordeste. Não vieram títulos, como da primeira vez, mas não por culpa do craque, estrela solitária de elencos limitados. O fôlego também já não era o mesmo, mas isso foi compensado com extrema categoria, técnica, garra e talento inconfundíveis.
Durantes esses dois anos, foi praticamente o único motivo de alegria da sofrida nação tricolor. Seus lances mágicos, como o drible com o peito no zagueiro Cléber, do Palmeiras, num jogo da Fonte Nova, e gols decisivos, como na vitória sobre o São Paulo em Pituaçu e no primeiro Bavi de 1996, de peixinho, faziam a torcida vibrar e lembrar do outrora vencedor Bahia.

O adeus

Encerrou a carreira em 1997, mas não sem antes atingir mais um feito histórico com o clube. Em 15 de junho daquele ano, foi o protagonista do primeiro e um dos raros triunfos do Bahia no Barradão, sobre o Vitória – era a sua despedida dos Ba-vis.
Deus o adeus definitivo aos campos num jogo de festa contra o Palmeiras, no palco onde mais brilhou, a Fonte Nova. Recebeu flores, placas, beijos, abraços homenagens e aplausos de uma nação que aprendeu e amou reverenciá-lo – a torcida tricolor. Bobô não teve que agradecer naquela hora. Não tinha feito outra coisa ao longo de seus cinco anos de casa a não ser agradecer ao carinho daquela gente, com gols, maestria e títulos, incluindo o maior deles.
Antes de sair do gramado, os refletores se apagaram e um holofote descarregou um feixe de luz sobre o craque. Foi a senha para a ovação do público. Não deu para segurar a emoção. Como na conquista do Brasileirão de 1988, na comemoração de alguns dos 258 gols assinalados na carreira, na dor pelas fraturas, o craque não segurou as lágrimas. Pouco depois da saída de campo, as luzes se apagaram. Mas só as do holofote, porque a estrela chamada Bobô segue reluzente, principalmente nos corações tricolores, e continuará acesa sempre como uma das de brilho mais intenso da história do futebol brasileiro.

Elegância sutil: marca registrada

A maior homenagem a Bobô fora das quatro linhas foi prestada por alguém que, como ele, também é um dos maiores ícones da Boa Terra – o cantor e compositor Caetano Veloso.
Na música Reconvexo, Caetano fala daquilo que lhe dá prazer, como o suingue do músico guianense Henri Salvador, o humor do comediante americano Andy Warhol e as batidas do grupo afro baiano Olodum. Uma deles, é o talento do craque, expresso no seguinte verso:

“Quem não amou a elegância sutil de Bobô”.

Em apenas duas palavras – elegância e sutil - , Caetano resumiu com a extrema precisão e genialidade o estilo Bobô. O verso passou a ser uma espécie de marca registrada do ídolo depois que a música ganhou popularidade na voz inconfundível de Maria Bethânia.

Confira a letra completa:

Reconvexo

Composição: Caetano Veloso
Eu sou o vento que lança a areia do Saara
Sobre os automóveis de Roma
Eu sou a sereia que dança
A destemida Iara
Água e folha da Amazônia
Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra
Você não me pega
Você nem chega a me ver
Meu som te cega, careta, quem é você?
Que não sentiu o suingue de Henri Salvador
Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô
E que não riu com a risada de Andy Warhol
Que não, que não e nem disse que não Eu sou um preto norte-americano forte
Com um brinco de ouro na orelha
Eu sou a flor da primeira música
A mais velha
A mais nova espada e seu corte
Sou o cheiro dos livros desesperados
Sou Gitá Gogóia
Seu olho me olha mas não me pode alcançar
Não tenho escolha, careta, vou descartar
Quem não rezou a novena de Dona Canô
Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor
Quem não amou a elegância sutil de Bobô
Quem não é Recôncavo e nem pode ser reconvexo